“Dancei um samba em traje de maiô e o tal do mundo não se acabou”

“Fim do constitucionalismo? Você quis dizer: fim do mundo?”, Google sobre fim do constitucionalismo.

“Não. Sim. Quer dizer… se o constitucionalismo acaba, o Estado acaba, né?!, aluno confuso sobre fim do constitucionalismo.

“Desculpa, eu juro que li o texto, mas não entendi…”, aluno aflito sobre fim do constitucionalismo.

“Não vou nem mentir: não li o texto. Mas, ajuda, por favor, a prova é amanhã!”, aluno desesperado sobre fim do constitucionalismo.

“Ô loco, meu”, Faustão sobre fim do constitucionalismo.

Se pensarmos na história do constitucionalismo, perceberemos que os movimentos que levaram a sua consolidação visavam à estruturação e/ou limitação do poder político do Estado e seus governantes. Isso ocorre através de diversas linhas de pensamento e ação, como a ideia de supremacia da Constituição, da proteção de direitos fundamentais, de constância e segurança jurídica (quando pensamos na rigidez constitucional), na divisão e restrição de poder de forma predefinida… Devido a essas restrições, os tomadores de decisão ficam sujeitos a um aparato normativo que os impede de se aproximar da tirania e da utilização inconsequente do seu poder.

De forma bem simples (e reduzida), a Constituição poderia ser entendida como a moldura de um quadro. Uma moldura que é anterior a esse quadro. Ela pode até ter sido esculpida em um material um pouco maleável, a princípio, porque quem a pensou não sabia exatamente as medidas da tela, mas seu objetivo é ser firme, consolidada. Sua versão final será de pedra, material duradouro. Assim como quando imaginamos uma pintura comum, as dimensões da tela não devem ultrapassar as da moldura. A moldura pode até ser ajustada, apesar de normalmente haver procedimentos específicos para que tal mudança ocorra no caso das cartas magnas, mas a busca pela moldura (Constituição) de pedra fixa e estática, garantidora de segurança jurídica e proteção dos direitos fundamentais, é uma constante. Mas, qual é a relevância desse desejo de permanência? Ela implica que modificações significativas na Constituição levam a crises políticas e instabilidade. Rachaduras e quebras na pedra, pela natureza do material, podem ser mais danosas e difíceis de recuperar do que em outros materiais. Existe uma inconstância no próprio cerne do constitucionalismo que é esse medo de mudança, o objetivo do movimento é estabilidade, engessamento. Para ilustrar essa busca, é só pensar nas chamadas cláusulas pétreas previstas na nossa Constituição atual (art.60, parágrafo quarto). A moldura pretende ser perfeita e se adequar totalmente à tela. Mas, não se espera que a sociedade, ao contrário da tela, seja estática: ela pode mudar, se expandir, retrair e tomar formas ainda não conhecidas por quem arquitetou a moldura.

Em uma carta a Samuel Kercheval, de 12 de julho de 1816, Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, afirmou que as “leis e instituições devem acompanhar o progresso da mente humana”. Na busca de demonstrar o perigo da estaticidade constitucional, ele comparou essa qualidade de ser fixa como se ela fosse uma jaqueta, um casaco. Ter um texto constitucional engessado, para ele, seria o mesmo que exigir que um homem adulto usasse a mesma jaqueta que o servia quando ele era criança.

Mas, pensando na possibilidade de emendas constitucionais, não seriam elas a solução para esse engessamento? Na visão de parte dos autores que discutem o fim do constitucionalismo, não. Isso se deve ao fato de que emendas à Constituição contribuem para a compreensão da sociedade de que ela, a Constituição, não é estável, que é seu objetivo. Kathleen Sullivan, autora e ex-diretora da Stanford Law School, afirma, inclusive, que a Constituição deveria ser “apenas emendada relutantemente como último recurso”.

Outro ponto que é bastante levantado nessa discussão é a ideia do constitucionalismo como defensor e garantidor da democracia: seria democrático, partindo da ideia de supremacia da Constituição e garantia dos direitos humanos, utilizar dessa imutabilidade para proteger a democracia? Ronald Dworkin afirma que sim. Para ele, “não há nada de não democrático em proteger os direitos necessários para a democracia existir”. Contudo, há autores, como Jeremy Waldron que defendem que não, o fato de atribuir a outrem (juízes, por exemplo) e não ao povo o poder de decidir sobre a Constituição não seria democrático. Porém, pode-se perguntar: não seria a constituição um meio de garantir a democracia, mas a relação real existente é entre direitos fundamentais e democracia? Não seriam eles o elo real? A democracia, na visão dos autores que discutem o fim do constitucionalismo, possui um elo com esses direitos, mas não, necessariamente, com a Constituição.

Então, de forma muito genérica, qual a necessidade de existir esse texto estático se o objetivo final é a garantia dos direitos humanos, através (ou visando à) da democracia? Existe mesmo a necessidade de um texto constitucional “fechado” ou “pronto”? Trazendo um pouco para a nossa realidade, observa-se que, no caso do Brasil, o controle de constitucionalidade é feito, de acordo com a doutrina majoritária, pelo poder judiciário. Ele é realizado por um grupo de pessoas que não foi eleito. Não está diretamente nas mãos do povo, no que tange o texto constitucional, interpretá-lo e modificá-lo na seara desse controle. Quão democrático isso é realmente?

Como resposta, os autores propõem diversas maneiras de se garantir a democracia e proteção dos direitos fundamentais. Alguns acreditam que deveria o povo ser o detentor do controle de constitucionalidade, através de iniciativas populares e maior participação (quando se pensa nos pontos de Dahl para a poliarquia, por exemplo); outros defendem modificação das instituições que compõem e podem modificar a Constituição; há aqueles que defendem o fim da Constituição como a conhecemos, propondo um texto bastante flexível com uma lógica estruturante diferente; e muitas outras propostas. Contudo, em comum na percepção dos autores, existe a relação dos direitos fundamentais como estruturantes das instituições e seu elo com e para a democracia, sendo o constitucionalismo como o conhecemos insuficiente (para alguns até desnecessário) para a garantia desses pilares sociais.

Sendo assim, não, o fim do constitucionalismo não é o fim do mundo. Tampouco é o fim da Constituição, necessariamente. Ele consiste numa crítica ao caráter estático e emoldurado presente nas cartas magnas e movimentos constitucionais observado pelos autores.

Elisa Bertilla de Siqueira Silva

Monitora de Teoria da Constituição