O corrente ano de 2018 (mais precisamente o dia 11 de novembro) marca o centenário do armistício final do conflito bélico que tinha como ambição prevenir todas as outras guerras. A Grande Guerra – ou Primeira Guerra Mundial, como passou a ser chamada pós-1945 – é épica, não só por suas proporções, mas, também, por ter surgido no seio de um continente bucólico.
À virada do século XIX para o XX, a Europa viveu a Belle Époque, tempo em que a alta burguesia, a aristocracia e a realeza das grandes cidades europeias desfrutavam despreocupadamente de luxos e prazeres requintados, divertindo-se com grandes óperas e peças teatrais, bebendo vinho branco espumante, promovendo festas grandiosas nos palácios e palacetes rurais, caçando, viajando em luxuosíssimos navios e aproveitando as mais modernas invenções, tais como o cinema dos irmãos Lumière e o automóvel dos engenheiros alemães Daimler e Benz.
Eis que, então, uma dúvida surge: por que, com uma elite tão confortável em seu papel, “a flor e a semente de um continente magnifico foram mortas na lama e na desgraça”? Por que a Europa lançou-se à batalha? Para sanar esta questão, faz-se, talvez, necessário abrir um parêntese e analisar superficialmente uma concepção cristã, qual seja, algumas condutas humanas – ou vícios humanos – que foram utilizadas pela Igreja Católica, a fim de educar seus seguidores e melhor compreender e controlar os instintos básicos da humanidade e assim aproximá-la de Deus. No século XIII foi elaborada uma lista que descrevia esses defeitos perniciosos; a este rol de vícios deu-se o nome de Sete Pecados Capitais.
Impende esclarecer aos leitores que se aventuram por esses parágrafos que não nos propomos, nestas mal traçadas linhas, tingir vívido retrato do que pode ser considerado como as máculas da alma humana. Citam-se, aqui, os pecados capitais porque, faz-se necessária a apropriação de alguns desses conceitos para lançar outra luz sobre a série de eventos que deslancharam numa guerra de proporções épicas. Isto posto, cabe ressaltar que, as diversas listas dos pecados capitais sofrem pequenas alterações, de uma região para outra, ou mesmo de uma época para a outra. Contudo, qualquer que seja a classificação o Orgulho sempre está presente, ainda que assuma uma única de suas várias faces; pode aparecer como Vaidade, Arrogância ou Soberba.
O que queremos dizer é, ao tratar desses vícios, a Igreja Católica tinha como foco uma microuniversalidade, isto é, visava o efeito dos vícios no ser humano individualmente considerado. Nosso objetivo, ao nos apropriarmos desses conceitos, é perceber como, numa macrouniversalidade, determinadas situações e contextos históricos tem o condão de afetar o comportamento de uma sociedade como um todo e influenciar sobremaneira os destinos de uma nação no cenário diplomático internacional.
Assim, pelo léxico, pode-se conceituar o orgulho, em qualquer de suas facetas, como o sentimento excessivo de dignidade pessoal, marcado por um desejo imoderado de pôr-se mais elevado que os demais e atrair admiração, comportando-se, por vezes, de maneira frívola e presunçosa.
Pode-se dizer que a sociedade europeia àquela época era uma sociedade arrogante. Embebidas no espírito da Belle Époque, potências como o Reino Unido, Alemanha, França, Áustria, Rússia etc. comportavam-se como atores, ou bailarinos a disputar os holofotes e o protagonismo no palco principal. Cada uma daquelas nações acreditava-se superior às outras, criam-se mais desenvolvidas, mais ricas, mais poderosas ou mais fortes. E esse orgulho, essa vaidade e arrogância excessivas, talvez tenha sido um dos fatores que empurrou o mundo ladeira abaixo rumo a mais terrível guerra jamais vista até então.
Ao alvorecer o séc. XX, a Europa era menos um conglomerado de Estados e mais um condomínio familiar. A maioria dos monarcas europeus – inclusive os que permanecem no trono até os presentes dias – descendia da Rainha Vitória da Inglaterra, ou com ela tinham algum grau de parentesco. A orgulhosa soberana casara-se, em 1840, com seu primo germânico, o Príncipe Albert von Sachen-Coburg und Gotha. Este matrimônio frutificou em nove filhos e quarenta e dois netos. Grande parte desta vasta descendência casou-se com outros membros da realeza por todo continente, rendendo à Vitória o apelido de “a avó da Europa”.
O reinado de Vitória, que durou 63 anos e 7 meses, foi o mais longevo da história britânica até 2016 – quando sua trineta, Elizabeth II, quebrou o recorde – é considerado um marco da prosperidade inglesa, tornando-se conhecido como a “Era Vitoriana”. Neste período, ocorreu o que historiadores chamam de Segunda Revolução Industrial – com a invenção de motores a combustão, fomento da energia elétrica e da indústria siderúrgica e de máquinas pesadas, com destaque também para a indústria química, que produzia derivados do petróleo, remédios e fertilizantes.
Estas mudanças tecnológicas ensejaram, também, uma mudança econômica. Uma vez que as fábricas demandavam milhares de empregados, foram tornando-se tão gigantescas que esmagavam facilmente os pequenos concorrentes. Pronto! O capitalismo de livre concorrência dava lugar ao capitalismo monopolista. Os monopólios floresceram com tal rapidez e a capacidade produtiva era tão intensa que era humanamente impossível para as nações europeias absorver toda a produção. Por esta razão, as indústrias tiveram de diminuir o ritmo, o que acarretou uma gama de problemas econômicos, tais como falências, desemprego galopante e miséria nas camadas sociais mais baixas.
O problema era monstruoso. Como solução adotou-se a exportação de capital: as grandes potências europeias protegiam-se da crise investindo dinheiro no exterior e dominando economicamente as nações que consideravam subdesenvolvidas ali aproveitavam-se de matérias-primas baratas, mão de obra abundante à preços irrisórios e grandes mercados consumidores.
Os países capitalistas lançaram-se a dominar a economia da América Latina, África e Ásia e coube ao Reino Unido, à época a nação mais poderosa do mundo, o maior império colonial daquele período.
De outro lado, é interessante notar que, até meados de 1860, a Alemanha não existia. Os povos germânicos que viviam na Europa central eram um emaranhado de pequenos reinos, principados, ducados e até mesmo repúblicas. Dentre esses Estados, os mais poderosos eram, indubitavelmente, a Prússia e a Áustria. Quando Otto von Bismark, o “chanceler de ferro”, ascendeu ao posto de primeiro-ministro prussiano, engendrou-se o Zollverein, uma política de livre comércio entre os diversos estados alemães. Como o movimento era liderado pela Prússia, a Áustria fora, deliberadamente, excluída do acordo e, tendo de concentrar seus esforços para enfrentar as rebeliões nacionalistas dos povos que dominava (tcheco, eslovacos, húngaros, eslavos), o governo austríaco, não teve condições de contestar a Prússia.
Bismark desprezava os ideais liberais e acreditava que uma unificação dos estados alemães era necessária e deveria ser feita “a ferro e sangue”. E assim o fez. Utilizou-se da crescente indústria prussiana para equipar um poderoso exército e expandiu as fronteiras englobando, à força, os países vizinhos. Por fim, para criar um sentimento patriótico na nação insurgente, Bismark provocou uma guerra contra a França. Como os exércitos prussianos eram maiores e melhor equipados, o triunfo era inegável. Em 1871 a França, derrotada, cedeu à Bismark a região da Alsácia-Lorena – esta derrota desencadeou um ressentimento nacionalista conhecido como revanchismo francês e fomentou uma explosiva rivalidade entre as duas nações – e o rei da Prússia, Wilhelm I, era coroado kaiser do Império Alemão. Com a unificação, a Alemanha desfrutou de um espetacular desenvolvimento industrial, tornando-se a segunda maior potência da Europa.
Para arrematar este singelo panorama diplomático, falta dizer que desde o longínquo ano de 1327, os britânicos disputavam a hegemonia na Europa com os vizinhos do sul: os franceses. Ao longo dos anos eclodiram inúmeras guerras entre as duas potências e a relação diplomática entre elas nunca foi das melhores. No final do século XVIII, a França enfrentara uma revolução que lhe expurgara a monarquia absolutista. A modernidade da república francesa não durou muito, porém, e durante boa parte do século XIX os franceses enfrentaram uma realidade instável e conturbada. Não obstante ser uma das nações mais poderosas do mundo – tendo sido praticamente imbatível militarmente nos reinados de São Luís, Felipe IV e Luís XIV, por exemplo – a França via-se isolada diplomaticamente desde sua derrota na Guerra Franco-Prussiana de 1871. Ainda assim o país conseguiu se modernizar e industrializar na esteira do vizinho ao norte, e construiu para si o segundo maior império colonial do mundo, atrás somente do império britânico.
A fim de romper de vez com o bloqueio diplomático à Paris, a república francesa vinha, desde 1888, emprestando altas somas de dinheiro à juros baixíssimos ao Império Russo. A Rússia era uma gigantesca autocracia que se estendia até a Ásia, mas que era ainda bastante atrasada em relação às outras nações da Europa, contando com pouquíssimas indústrias e duas cidades de destaque: Moscou e São Petersburgo. Curiosamente, mesmo com uma população formada em sua maioria esmagadora por camponeses famintos, a Rússia possuía uma nobreza extremamente rica; nobreza esta que era absolutamente fascinada pela moda e maneirismos franceses – à época corria à raia miúda o boato de que os membros da família imperial russa não sabiam falar o idioma, pois que tinham como língua materna o francês, prova irrefutável do imenso soft power que a França sempre exerceu. Essa aproximação entre os dois países deu origem à Aliança Franco-Russa de 1882.
Têm-se, portanto, que ao final do século XIX e início do século XX, a sociedade europeia gozou uma época de grande prosperidade, mas, paradoxalmente, a distribuição absurdamente desigual dos lucros do progresso bem como as disputas territoriais entre as grandes potências geravam um clima de instabilidade constante. Rivalidades e ressentimentos nacionalistas mesclavam-se num intrincado sistema de alianças e complexas e o sabor do confronto iminente era palatável no ar da Europa.
Não faltavam razões para o acirramento das divergências entre os países europeus. Para começar, como a França e o Reino Unido tiveram uma industrialização mais antiga, partilharam entre si, como já o dissemos, as mais vastas regiões formando os dois maiores impérios coloniais. A Alemanha, por sua vez, era absolutamente insatisfeita com esta partilha. Como o fenômeno da unificação alemã ocorreu somente na segunda metade do século, sua industrialização, não obstante fenomenal, foi tardia e a nação passou a desafiar a supremacia anglo-francesa, fazendo pressões diplomáticas e militares a fim de exigir uma nova divisão dos impérios coloniais de suas rivais. Para alcançar esses objetivos, a Alemanha firmou, em 1882, com Itália e Áustria um acordo político-econômico-militar conhecido como a Tríplice Aliança.
Como a Tríplice Aliança imiscuía-se cada vez mais nos assuntos anglo-franceses, as duas potências assinaram em 1904 uma série de acordos que marcaram o término de quase um milênio de conflitos intermitentes entre ambas. Com a assinatura da Entente Cordiale, pela primeira vez, Reino Unido e França surgem em bloco impondo aos rivais todo o seu hard power, isto é, toda sua força econômica e militar.
Para agravar ainda mais a situação, o governo autocrata da Rússia resolveu assumir o “dever sagrado” de proteger todos os povos eslavos da Europa, entrando não raro em conflito com o Império Austro-Húngaro e com o Império Turco-Otomano, pois que eles dominavam com punhos de ferro a região dos Bálcãs, onde se localizavam várias nações eslavas. Aproveitando-se da rivalidade entre Rússia e Áustria, o Reino Unido firmou com a primeira, em 1907, a Entente Anglo-Russa, que cominada à Entente Cordiale (1904) e à Aliança Fraco-Russa (1882) deu origem ao acordo da Tríplice Entente.
A Europa de 1914 dividia-se, pois, em dois blocos antagônicos: de um lado a Tríplice Aliança (formada pelo Reino da Itália, Império Alemão e Império Austro-húngaro) e do outro a Tríplice Entente (Reino Unido, França e Rússia). A situação não poderia ser mais periclitante: as seis maiores potências do continente europeu – talvez do mundo – eriçavam-se umas contra as outras e, punham-se prontas para a guerra. Bastava uma fagulha, para que todo o amálgama de orgulhos feridos, brios exacerbados e sentimentos de superioridade explodissem de maneira descomunal. Tudo o que faltava era o pontapé inicial, um pretexto qualquer. Ironicamente, o pretexto arranjado, que não tardou a surgir, foi um mero capricho do acaso: um automóvel que dobrou a esquina errada!
Na tarde de 28 de junho de 1914, o herdeiro do trono austro-húngaro, Arquiduque Franz Ferdinand, visitava Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina como representante de seu tio, o imperador Franz Joseph I.
A Bósnia-Herzegovina era parte anexada do Império Austro-Húngaro, localizando-se, todavia, na península balcânica, em que conviviam, em estado de permanente confronto, povos de formações étnico-religiosas bastante diversas. Ademais, por possuir posição estratégica – conectando a Europa ao Oriente – aquele território era fonte intermitente de conflitos entre as diversas potências que cobiçavam dominar a rota comercial do Mediterrâneo oriental. Até o século XIX, toda a península encontrava-se sob o domínio implacável do Império Turco-Otomano, que vivia as turras com a Áustria e a Rússia.
As constantes guerras, porém, acabaram por, gradativamente, escorraçar os turcos e dar independência àquelas pequenas nações. Porém, o poder não deixa vácuo, e, tão logo houve a expulsão turca, o Império Austro-Húngaro, um estado expansionista, aproveitou-se para impor sua “influência” àquela região. Mesmo independentes, as jovens nações balcânicas eram ainda oprimidas por um invasor estrangeiro e muitas delas – se não todas – sentiam-se emudecidas e esmagadas sob os calcanhares do poderoso vizinho ao norte.
Neste matiz, não é surpresa existissem inúmeros movimentos antiaustríacos na região, e, em especial, na Sérvia. A Sérvia conseguira sua independência em 1878, quando a Rússia derrotou o Império Turco-Otomano e expulsou-o dos Bálcãs. Sendo um estado encravado na península balcânica, a Sérvia alimentava um desejo expansionista de unir todos os povos eslavos dali numa única nação, a Grande Iugoslávia, mas, o Império Austro-Húngaro era um obstáculo intransponível para a concretização deste plano. Nos bastidores sérvios o grupo rebelde (ou revolucionário, para alguns) chamado de a “Mão Negra” comandava, de facto, a política nacional, e foi a liderança desse grupo, que autorizou alguns estudantes e nacionalistas sérvios atravessaram a fronteira para a Bósnia e intentar o golpe máximo na vaidade austríaca: assassinar o herdeiro do trono.
Alheio ao plano nefasto, o Arquiduque, em carro aberto, rumava à prefeitura de Sarajevo onde discursaria. Em meio ao desfile austríaco, os jovens sérvios atiram uma bomba em direção ao automóvel… Mas erram o alvo. O carro acelera e alcança seu destino, a prefeitura, onde Franz Ferdinand, furioso e apoplético, discursa e reclama do atentado.
À saída da prefeitura, a segurança põe-se em alerta máximo. O trajeto de volta fora alterado a fim de evitar multidões e frustrar de vez os planos “terroristas”. Desiludidos, os jovens sérvios desaparecem pela cidade e um deles, Gavrilo Princip, para, despreocupadamente, numa lanchonete para comprar um sanduíche antes de viajar de volta para seu país natal.
Ante este quadro, os caprichos do destino resolveram intervir. O motorista do arquiduque esqueceu-se da alteração de rota e dobrou na rua errada. No afã de retomar o caminho pré-estabelecido, o carro de Franz Ferdinand parou exatamente em frente à lanchonete onde estava Gavrilo Princip. Vendo uma oportunidade única, Princip sacou sua pistola e alvejou, à queima roupa, Sua Alteza Imperial, matando o herdeiro austríaco e sua esposa, e, desta forma, pondo em marcha o intrincado sistema de alianças que levariam a Europa à inevitável guerra.
Em 1914, o imperador Franz Joseph I contava já 84 anos de idade e ocupava, há quase 66, o trono de um império que se esfacelava paulatinamente. A morte do sobrinho não era a primeira tragédia pessoal que maculava a vida do imperador; seu filho, o príncipe herdeiro Rudolph suicidara-se em 1889 e a esposa, imperatriz Elizabeth (Sissi, para a família), fora assassinada nas ruas de Genebra em 1898. Assim, por mais bélico e poderoso que fosse o Estado austro-húngaro, não seria de se admirar que o desejo do imperador fosse tão somente assegurar uma tranquila transição interna do poder, mas o assassinato de Franz Ferdinand arruinou lhe os planos.
O governo sérvio foi prontamente responsabilizado pelo atentado e a afronta era muito aviltante para que a Áustria quedasse silente. Só em Sarajevo, mais de 200 sérvios foram presos, e alguns enforcados na prisão; outros tantos morreram em perseguições por toda Bósnia-Herzegovina. Em Viena, o alto escalão do governo acreditava que deixar o assassinato sem resposta e perder a oportunidade de esmagar o incômodo país sérvio deixaria a monarquia austríaca “exposta a novas explosões de agitações étnicas”.
Entretanto, não obstante Franz Joseph I se autoproclamar “o último monarca europeu da ‘velha escola’” e resistir firmemente a qualquer forma de mudança política ou social, o imperador era, também, um soberano cansado e ciente de suas limitações militares. Sim, em sua opinião a Sérvia devia ser punida, mas o povo eslavo dos Bálcãs era protegido pela autocracia russa. O dilema do imperador se resumia numa questão: “como promover a guerra se todos, em particular a Rússia, irão nos atacar?”. A solução era mais simples do que se poderia imaginar: era mister obter o apoio da Alemanha.
Ante a possibilidade de acionar a Tríplice Aliança, o imperador Franz Joseph I pediu ajuda ao kaiser, Wilhelm II, que lhe respondeu que caberia à Áustria decidir o que fazer e assegurou que, independente da decisão, a Alemanha permaneceria um amigo fiel e aliado à monarquia austríaca. Em 23 de julho de 1914, o governo austríaco enviou um ultimato à Sérvia. O documento era apenas um pretexto, uma vez que continha exigências tão excessivas e humilhantes que era dignamente impossível para o país balcânico aceitá-lo. Acuado, o regente sérvio, Príncipe Alexander, telegrafou à são Petersburgo clamando ajuda.
Wilhelm II era o neto mais velho da Rainha Vitória sendo, também, primo do Tzar Nicolau II da Rússia e do Rei George V do Reino Unido. Quando deu seu aval à Áustria ele o fez sem qualquer consideração acerca das consequências do acordo político que acabara de firmar. Aliás, após enviar sua resposta à Franz Joseph I, o kaiser tinha absoluta certeza de que a Sérvia jamais se arriscaria à guerra que partiu, em férias, com seu iate. Quando retornou ficou estupefato e furioso: o embaixador austríaco na Sérvia tinha ordens expressas para recusar qualquer resposta ou oferta de paz que lhe fosse apresentada e, assim, no dia 28 de julho, a Áustria declarou guerra.
Por enquanto, a guerra se desenrolava tão somente entre a Áustria e a Sérvia. Nada ilustra melhor a tensão dos dias que se seguiram do que a série de telegramas trocados entre o kaiser Wilhelm II e o tzar Nicolau II. Os dois primos ainda tentavam manter intactos os rotos fiapos de paz que rapidamente lhes escapavam pelos dedos.
Deu-se assim a correspondência entre eles:
Foi com a mais grave preocupação que soube da impressão que ação da Áustria contra a Sérvia está criando em seu país. A inescrupulosa agitação que vem ocorrendo há anos na Sérvia resultou no ultrajante crime do qual o arquiduque Franz Ferdinand foi vítima. Você, sem dúvida, concordará comigo que nós, você e eu, temos um interesse comum, bem como todos os soberanos, em exigir que todas as pessoas moralmente responsáveis por esse covarde assassinato, recebam o castigo merecido. Nisso, a política não toma parte.
Por outro lado, entendo plenamente como é difícil para você e seu governo encararem a corrente da opinião pública. Portanto, em respeito à calorosa e terna amizade que nos une há tanto tempo com firmes laços, exerço minha mais extrema influência para induzir os austríacos a lidarem diretamente e chegarem a um entendimento satisfatório com você. Espero confiantemente que me ajude em meus esforços para suavizar as dificuldades que possam surgir.
Seu muito sincero e devotado amigo e primo,
Willy
Nesse grave momento, apelo a você para me ajudar. Uma guerra ignóbil foi declarada contra um país fraco. A indignação na Rússia, plenamente compartilhada por mim, é enorme. Prevejo que em breve serei esmagado pela pressão sobre mim e forçado a tomar medidas extremas que levarão à guerra. Para tentar evitar uma calamidade, como uma guerra europeia, peço-lhe, em nome de nossa amizade, que faça o que puder para impedir que nossas aliadas cheguem longe demais.
Nicky
Seria muito possível para a Rússia permanecer como expectadora do conflito austro-sérvio sem envolver a Europa na mais horrível guerra jamais vista. Penso que um entendimento direto entre o seu governo e Viena é possível e desejável e, como já lhe telegrafei, meu governo continua se empenhando em promovê-lo. É claro que medidas militares da parte da Rússia, que seriam vistas como ameaçadoras pela Áustria, precipitariam uma calamidade que ambos desejamos evitar e poriam em risco minha posição como mediador, que aceitei prontamente por seu apelo à minha amizade e ajuda.
Willy
Agradeço a você seu telegrama amigável e conciliatório, considerando que as comunicações do seu embaixador ao meu ministro hoje foram em tom muito diferente. Por favor, esclareça essa diferença. O problema austro-sérvio deve ser submetido à Conferência de Haia. Confio em sua sabedoria e amizade.
Nicolau
Como não vislumbrasse um cessar-fogo, em 30 de julho a Rússia mobilizou suas tropas contra a Áustria, em apoio à Sérvia.
As medidas militares que vieram a ser tomadas foram decididas cinco dias atrás por motivos de defesa, em vista dos preparativos da Áustria. Espero de todo o coração que essas medidas não interfiram em seu papel de mediador, que valorizo grandemente. Precisamos de sua forte pressão sobre a Áustria para chegar a um entendimento conosco.
É tecnicamente impossível para mim, suspender os preparativos militares. Mas, enquanto as conversações com a Áustria não forem interrompidas, minhas tropas irão se abster de tomar a ofensiva, dou-lhe minha palavra de honra.
Nicky
Cheguei aos mais extremos limites do impossível nos meus esforços para salvar a paz. Não sou eu quem irá carregar a responsabilidade pelo terrível desastre que ameaça agora o mundo civilizado. Você, e tão somente você, ainda pode evitá-lo. Minha amizade por você, e por seu império, que meu avô me legou em seu leito de morte, ainda é sagrada para mim, e fui leal à Rússia quando teve problemas, notadamente durante sua última guerra. Mesmo agora você ainda pode salvar a paz na Europa, suspendendo suas medidas militares.
Willy
A mobilização do gigantesco exército russo causou consternação ao governo berlinense. Mesmo que quisesse manter seu papel de pacificador – o que, pela notória personalidade de Wilhelm II é algo bastante duvidoso –, o kaiser tinha plena consciência de que o fatídico dia chegara. Nicolau II ainda enviou nova mensagem ao primo, assegurando-lhe que a mobilização de suas tropas não significava guerra, mas era demasiado tarde. Antes mesmo que o telegrama chegasse à escrivaninha do kaiser, às 19:10 do dia 31 de julho de 1914, a Alemanha entrou em guerra com a Rússia, para cumprir seus compromissos com a Áustria.
Ciente de que este ato acionaria a Tríplice Entente, o kaiser antecipou-se e, em 3 de agosto, declarou guerra à França, dando início, no dia seguinte, à sua ofensiva. O plano do governo alemão era deflagrar um ataque fulminante que derrotaria rapidamente o exército francês para em sequência voltar suas forças contra a Rússia, evitando, deste modo, batalhas concomitantes em duas frentes. Com o intuito de chegar à Paris, o exército alemão invadiu a Bélgica, um país neutro. O Reino Unido alegou perplexidade pela violação da neutralidade belga e, em resposta, declarou guerra à Alemanha.
Contudo, o governo alemão superestimara suas forças e subestimara as forças do inimigo. O rolo compressor alemão foi detido pelas forças combinadas francesas e britânicas na batalha do rio Marne, o que inaugurou a chamada guerra de trincheiras, isto é, os soldados de ambos os lados fixaram-se frente a frente em abrigos cavados na terra e protegidos por arame farpado.
Na frente oriental as coisas não correram de modo diverso. De início, o gigantesco exército russo obteve inúmeras vitórias. Wilhelm II, que esperava que os exército austríaco empregaria o grosso de suas forças para lidar com os russos, ficou chocado e furioso quando percebeu que Franz Joseph I estava mais preocupado em lutar contra a Sérvia, deixando aos russos caminho livre para Berlim. De fato, a Rússia invadiu a Áustria e a Alemanha, forçando o governo alemão a dividir suas tropas a fim de evitar que os russos chegassem à capital alemã. No início de 1915, a ofensiva russa foi contida pelos exércitos austro-alemães, e os soldados, como na frente ocidental, imobilizaram-se em trincheiras.
O campo de batalha é terrível. Há um cheiro azedo, pesado e penetrante de cadáveres. Homens que foram mortos no último outubro estão meio afundados no pântano e nos campos de nabo em crescimento. As pernas de um soldado inglês ainda envoltas em polainas, irrompem de uma trincheira, o corpo está empilhado com outros; um soldado apoia seu rifle sobre eles. Um pequeno veio de água corre através da trincheira e todo mundo usa a água para beber e se lavar; é a única água disponível. Ninguém se importa com o inglês pálido que apodrece alguns passos adiante. No cemitério de Longermark, os restos de uma matança foram empilhados e os mortos ficaram acima do nível do chão. As bombas alemãs caindo sobre o cemitério, provocaram uma horrível ressurreição. Num determinado momento, eu vi 22 cavalos mortos, ainda com os arreios. Gado e porcos jaziam em cima, meio apodrecidos. Avenidas rasgadas no solo, inúmeras crateras nas estradas e nos campos. (Relato de um Soldado. Extraído de: BINDING, Rudolf. Um Fantasma na Guerra. In: BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo; MARQUES, Adhemar M. História Contemporânea Através de Textos. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 1994. p.119).
Enquanto o tempo inexoravelmente passava, a luta se intensificava, na Europa, nas colônias imperiais e no mar, onde a vantagem inglesa vinha sendo quebrada pela ação dos submarinos alemães. Outros países, visando, por óbvio, interesses próprios, aderiram à guerra. O Império Turco-Otomano (1914) e a Bulgária (1915) uniram-se aos alemães e austríacos. Ao lado da Tríplice Entente, entraram Japão (1914), Portugal e Romênia (1916), Estados Unidos, Grécia e Brasil (1917). No início da guerra, o governo italiano se recusou a entrar no conflito, argumentando que seu compromisso com a tríplice Aliança era apenas defensivo, mas em 1915, ingressou na guerra ao lado dos países da Entente. Deste modo, a Grande Guerra atingiu status mundial.
Em 1918, com o término da guerra, o armistício final foi firmado, por imposição francesa, no salão dos espelhos do palácio de Versalhes, o mesmo local onde Otto von Bismark havia proclamado o império alemão em 1871, quando da derrota francesa na guerra Franco-Prussiana. A Alemanha teve de assumir total responsabilidade pela guerra e pagar pesadas indenizações aos países vencedores. O Rei George V do Reino Unido declarou que o primo Wilhelm II era “o maior criminoso da história”.
Além da enorme destruição material e do saldo de 9 milhões de mortos, a Grande Guerra deixou na Europa um sabor amargo de derrota; mesmo as nações vencedoras não podiam considerar-se satisfeitas com a nova situação mundial. A hegemonia inglesa chegara ao fim, pois os britânicos perderiam sua supremacia para os Estados Unidos da América. O Império Turco-Otomano e o Império Austro-húngaro ruíram e desmembraram-se em diversos países. A autocracia russa sofreu uma sangrenta revolução em 1917, emergindo como a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, governada com mãos de ferro por um corrupto regime comunista; o Tzar Nicolau II, sua esposa Alexandra, e seus filhos Olga, Tatiana, Maria, Anastácia e Alexei foram brutalmente assassinados.
Na Alemanha, o kaiser foi forçado a abdicar do trono, exilando-se na Holanda, e instaurou-se a chamada República de Weimar. Porém, a humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes, converteu-se em ódio e ressentimento entre o povo alemão. Floresceram neste clima propício um sentimento extremista, alimentado pelo ultranacionalismo germânico e pelo espírito de revanche. Esses sentimentos seriam capitalizados pelo nazismo que, uma vez no poder, lançaria o mundo, duas décadas depois, numa nova guerra muito mais destrutiva do que a anterior e mais uma vez tempos sombrios e cruéis se agigantariam no horizonte do continente europeu.
Natan Matheus Campos de Mesquita
Pesquisador pelo Instituto de Investigação Científica Constituição e Processo, desde o ano de 2015. Foi Monitor da disciplina de Teoria Geral do Processo (2017). É Monitor das disciplinas Direito Processual Civil I e II na Faculdade Mineira de Direito (PUC Minas) e estagiário remunerado no Serviço de Assistência Judiciária “Desembargador Lopes da Costa” da Faculdade Mineira de Direito (PUC Minas).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCHMIDT, Mário Furley. Nova História Crítica: vol. III. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Nova Geração, 2002.
The First World War – Episode One: To Arms. Dir. Marcus Kiggell. British Broadcasting Corporation (BBC), 2003.