Acredito que um olhar para a nossa história pode ser extremamente esclarecedor quando buscamos entender o sentido de algumas questões sociais que nos cercam. Quando digo esclarecedor, é exatamente no âmbito de, a partir desse olhar histórico ser possível compreender fatos que, muitas das vezes, nos parecem incompreensíveis. Indo direto ao ponto que pretendo abordar nesse texto, um desses fatos, que me incomoda muito por parecer não ter razão nenhuma de ser, gira em torno da falta de moradia adequada para a maioria da população brasileira.
Frequentemente eu me perguntava como chegamos à uma situação em que temos mais de 11,4 milhões de brasileiros morando em aglomerados suburbanos (assentamentos irregulares também conhecidos como favelas, inversões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros.) Bem, fui encontrar resposta no ano de 1888. Dito ano, como todos bem sabem ou deveriam saber, foi o ano em que a princesa Isabel assinou da Lei Áurea, abolindo, portanto, a escravidão. Infelizmente, as consequências dessa libertação foram trágicas e deixam seus resquícios até os dias de hoje. Ao contrário do que queriam os abolicionistas e os simpatizantes da libertação à época, a abolição da escravatura de nada teve de humanitarismo solidário aos negros ou mesmo busca de reformas sociais democratizantes. A realidade girava em torno do fato de que os escravos se tornaram mão de obra obsoleta para os senhores de engenho e em contrapartida, cada vez mais imigrantes chagavam ao Brasil oferecendo mão de obra barata e qualificada. Sendo assim, aquelas pessoas que até então eram tratadas como coisa, ganharam a tão sonhado liberdade, porém não tinham para onde ir, o que comer, não sabiam ler nem escrever, assim como não conseguiam emprego assalariado devido à uma série de fatores, inclusive devido ao preconceito enraizado naquela sociedade da época marcada pelas características da oligarquia, ou seja, uma sociedade elitista e excludente.
O resultado desses fatos não poderiam ser diferentes, os escravos passaram a integrar à margem da sociedade. A violência aumentou. Aglomerados ao redor das cidades foram surgindo. Todas essas graves consequências, resultados de uma abolição imediata, sem planejamento, ou seja, sem políticas públicas para integrar os ex-escravos na sociedade novamente, nos leva exatamente aos dias de hoje.
Mais de um século depois e a sociedade continua sem saber lidar com essas pessoas que não possuem moradia. O governo, continua não conseguindo ou não querendo (preferimos acreditar que é não conseguindo mesmo) implantar políticas públicas, projetos e campanhas de integração. No entanto, a realidade não nós escapa aos olhos. Todos os dias quando saímos de casa nos deparamos com indivíduos morando em baixo de uma ponte ou de um viaduto. Passamos todos os dias perto de favelas e nos deparamos com a falta de infraestrutura das casas. E por mais que façamos um esforço enorme para ignorar aquilo que não nos atinge diretamente ( ou que nós fingimos que não atinge, porque na verdade atinge, e muito), é nessas horas que enxergamos a verdadeira realidade da vida, é nessas horas que, mesmo por um momento instantâneo, enxergamos de fato como a maioria da população brasileira vive.
Esse choque de realidade nos atravessa por um lapso temporal muito curto, porém um sentimento indefinido permanece dentro de nós. E esse sentimento nos persegue quando entramos no conforto da nossa casa, quando tomamos um banho quente, quando jantamos, quando deitamos na nossa cama e puxamos um cobertor para nos cobrir. E quando o sentimento finalmente passa, e saímos na rua, lá está novamente a cena que você não gostaria de ver, mas que ela insiste em aparecer.
Portanto, não estamos tão longe do século passado quanto parece. Apesar de muita coisa ter mudado, de sermos regidos por uma Constituição Federal pautada na socialidade, que garante em seu artigo 6 o Direto à moradia a toda e qualquer pessoa, a falta dessa, que se iniciou em 1888 com os ex escravos sendo colocados à margem da sociedade, permanece até hoje. E a cada ano que passa, a situação piora . A sociedade, assim como o Estado, fecham os olhos para isso. E daqui a 100 anos, quando alguém se perguntar porque tantos brasileiros estão sem moradia adequada, um breve olhar para a história irá explicar.
Letícia Mariano Borges de Figueiredo – Monitora da disciplina Direitos Reais