Dentre a numerosa prole de Zeus, o rei dos deuses, a filha mais cara ao Direito é Diké, a justiça personificada, aquela que observa os homens, julga-lhes os atos, recompensando os justos e punindo com rigor os ímpios. Vindicativa das transgressões à lei, é inimiga da falsidade e guardiã do ponderado emprego da justiça. É comumente representada descalça e de olhos bem abertos, demonstrando sua busca pela verdade. Em sua afamada obra A Luta pelo Direito o jurista alemão Rudolf Von Ihering apresenta, indiretamente, um retrato digno e fiel da deusa, afirmando que “a Justiça sustenta em uma das mãos a balança, com a qual ela pesa o direito, enquanto na outra segura a espada, com que ela o executa. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência da lei”.
Desde sempre as relações humanas são maculadas e intrincadas por conflitos. Há sempre um interesse almejado por diferentes indivíduos, uma pretensão de alguém resistida por outrem, sendo compreensível o porquê de encontrarmo-nos, há tanto, às voltas com complexa indagação: Como resolver nossas disputas? Nos primórdios, os indivíduos optavam pelo malfadado instituto da Autotutela, em que a parte beligerante dotada de maior força – física, política, psíquica etc. – estaria em vantagem, impondo sobre o outro sua vontade, não importando quem detinha, de fato, a melhor pretensão ao direito disputado. De outro modo, Diké cerrava seus olhos, ignorava a balança e brandia a espada, sem interessar-se em saber quem seria ferido por sua lâmina divina.
Eis que surge, em meados do Séc. XVII, uma teoria que se propunha a explicar como os homens “civilizaram” suas relações. Assim, com a célebre passagem Homo Homini Lupus – O Homem é o lobo do homem – o legalista britânico Thomas Hobbes garantiu sua entrada nos anais da História. Em sua obra, datada de 1651 e intitulada O Leviatã ou Matéria, Forma e Poder da Comunidade Eclesiástica e Civil, Hobbes afirmava que aquilo que o homem mais teme não é a tirania, mas o caos social; destarte, é-lhe mais aprazível renunciar à parte de sua liberdade individual em favor de uma autoridade que proporcione segurança, através da lei, regulando a vida em sociedade.
Sendo o homem propenso ao abuso de sua própria liberdade, erguendo-se em desafio em face de seus semelhantes a fim de garantir para si a superioridade, é imprescindível a existência de um Poder que lhe restrinja os meios de agir. Doutrinas semelhantes de Pacto Associativo podem ser encontradas nas obras de John Locke e Jean Jacques Rousseau. Em que pese suas diferenças de composição, todas as teorias têm em comum a concepção de que o homem escolheu entregar parte de sua liberdade com a finalidade de obter justa decisão em suas contendas.
Lendo sobre tais teorias é impossível não espocar em nossas mentes o conceito de Jurisdição Estatal. Contudo, vale dizer, a Jurisdição nem sempre foi pública, ao contrário, nasceu privada. O Direito Romano presenteou incontáveis ordenamentos jurídicos com diversos conceitos, dentre eles os fundamentos de um instituto que sobrevive ainda hoje e que constituiu o embrião da Jurisdição: trata-se da Arbitragem. No séc. V a.C. a vetusta Monarquia Romana foi substituída pela República, instituindo-se um sistema “judiciário” denominado Ordo Judiciorum Privatorum.
Neste sistema, as partes contenciosas indicavam um árbitro para julgar-lhes a causa. A solução do conflito tinha início na fase In Jure que se desenrolava perante um funcionário do Governo, o Praetor, diante do qual as partes estabeleciam a Fórmula (documento com uma série de quesitos que deveriam ser respondidos pelo árbitro; de outro modo, eram os limites da lide). A segunda fase, dita Apud Judicem, decorria perante o Judex (árbitro) que julgaria o conflito, decidindo sua resolução, considerando tão somente os fatos que constassem da Fórmula. Vale dizer, a partir do Séc. II a.C. era o próprio Praetor quem indicava o árbitro.
Acontece que a Arbitragem Romana era privada. Isto significa dizer que as partes precisavam assinar um documento (Litiscontestatio) confirmando que submeter-se-iam ao veredito do árbitro (estudando esta fase da história, no Séc. XVIII, o jurista francês Robert-Joseph Pothier formulou a Teoria do Processo como Contrato). Portanto, cabia ao autor convencer o réu a comparecer em “juízo”, posto que não existisse coerção do Estado para que este assim o fizesse. Deste modo, havia a previsão de realizar-se a justiça, mas não existiam meios efetivos para dar-lhe aplicação. Diké sopesava a divergência, porém restava inerte sua espada.
Apercebendo-se da situação e necessitando impor-se sobre os particulares e recuperar seu prestígio e unidade nacional, no final do Séc. III a.C., Roma, agora um Império, ampliou ainda mais os poderes do Praetor, tornando-o responsável por, além de instruir a Fórmula, decidir a causa, sendo defeso aos cidadãos utilizarem-se de qualquer forma de Arbitragem. Nesta fase, conhecida como Cognitio Extra Ordinem, o Estado chamou para si o poder de Dizer o Direito (Jurisdictio), assinalando a passagem do modelo de justiça privada para o de justiça pública.
Por óbvio, incoerente seria imaginar que a nascente Jurisdição romana é idêntica à Jurisdição hodierna. A História não dá saltos. Diversos acontecimentos trouxeram-nos noções básicas de direitos e garantias necessárias aos seres humanos; fizeram-no de forma positiva – através das lutas e revoluções para a conquista de direitos – mas, também, de forma negativa – forçando-nos a estabelecer garantias para que situações tão nefastas jamais acontecessem novamente O Cilindro de Ciro, o Grande, a Magna Carta de 1215, as Revoluções Gloriosa, Francesa e Russa, o Nazismo, o Stalinismo, as Grandes Guerras e todas as demais revoluções, guerras, manifestações e movimentos libertários que ocorreram através dos séculos, serviram de paralelepípedos a pavimentar o caminho que Diké galgou com pés descalços para alcançar a contemporaneidade.
No Brasil, em especial, com o advento da Constituição da República em 1988, começou-se a flertar com a Teoria Constitucionalista do Processo, flerte este que culminou com a adoção do Código de Processo Civil de 2015. O provimento final do processo (Sentença) não mais é ato solitário do Juiz. O processo tornou-se espécie de procedimento realizado em conformidade com os princípios constitucionalmente estabelecidos do Contraditório, da Isonomia e da Ampla Defesa. Assim, o procedimento processual – caminho da Jurisdição – bem como o próprio Processo, estruturam-se no corpo constitucional estabelecendo o chamado Direito Constitucional Processual.
Destarte, a Jurisdição moderna é, nas palavras de Alexandre Freitas Câmara, “a ‘jurisconstrução’ (perdoe-se o neologismo) de um resultado juridicamente correto para a causa submetida ao processo. (…) Cabe ao juiz, então, dar à causa uma solução conforme o Direito”, não “criando” uma solução para a causa, mas, como intérprete, aplicando a “norma jurídica adequada no caso concreto”.
Finalmente Diké se utiliza de ambas as mãos, e não o faz indiscriminadamente. Existem agora princípios que norteiam sua balança e garantias que limitam sua espada, o que é louvável, porque, novamente, segundo Ihering, “a balança e a espada têm de andar juntas, e o verdadeiro Estado de Direito só poderá existir quando a justiça brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança”.
Natan Matheus Campos de Mesquita
Monitor de Teoria Geral do Processo