JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS: INACESSO À JUSTIÇA

 

O contexto brasileiro, com o advento da Constituição da República, a partir de 1988, inegavelmente, foi de judicialização dos direitos e garantias fundamentais, no que tange, em grande medida, os direitos sociais. Ao passo em que o poder público não os concretizam em políticas públicas, e as desenvolvidas são deficientes quanto a prestação de seus serviços, visto se tratarem de tutelas de direitos. Assim, o judiciário passou a ser inundado de demandas, e a se posicionar em um papel de protagonismo na garantia desses direitos.

Outra marca do contexto atual são os Repeat Players[1], conhecidos como litigantes habituais, que, também, são responsáveis pela avalanche de processos judiciais. Esses litigantes são normalmente empresas do mercado de consumo, especialmente as telefonias, que polarizam inúmeros processos idênticos, cuja origem é a má prestação de serviços aos consumidores, bem como a ineficiência dos serviços públicos e a constante violação de direitos pelo poder público descentralizado.

Essas duas causas visíveis de atolamento do judiciário como um todo, estão presentes na maioria dos processos em andamento nos Juizados Especiais Cíveis e da Fazenda Pública, tomando como paradigma os de Minas Gerais, que aliado a outros fatores, tornaram-se  órgãos inefetivos, quanto à sua proposta de criação.

Em 1995, os Juizados Especiais foram criados pela lei 9.099/95 com objetivo de desafogar a Justiça Comum, transferindo a competência das causas de menor complexidade para esses órgãos, regidos pelos princípios da oralidade e simplicidade, com a pretensão de concretizar a garantia constitucional da Duração Razoável do Processo, tanto na Justiça comum, como consequência, quanto nos Juizados Especiais, como finalidade, que num primeiro momento, pensou-se numa celeridade processual como fim para consagrar o direito fundamental de acesso à justiça, com uma “justiça mais rápida”.

Entretanto, as causas de menor complexidade que em tese seriam resolvidas em tempo hábil, garantindo, assim, processos efetivos, não o são, pois se tornam complexas do ponto de vista processual, devido à atecnia procedimental, a discricionariedade judicial e a laicidade jurídica. Combinado com a ineficácia das Audiências de Conciliação obrigatórias (e dos instrumentos alternativos de resolução de conflitos) e a banalização do direito de ação, que impedem a superação da quantidade vertiginosa de processos em andamento.

A Lei 9.099/95 é muito vaga normativamente e depende da complementaridade do Código de Processo Civil, porém a determinação das normas que são aplicáveis subsidiariamente fica a cargo da discricionariedade dos juízes, os quais valendo-se dos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, recepcionam ou não alguns institutos ou técnicas processuais do CPC. Essa dependência hermenêutica gera nos Juizados uma espécie de Common Law às avessas, em que cada juiz adota regras diferentes em suas secretarias[2] e ninguém sabe ao certo quais normas são aplicadas, além de suprimir alguns recursos processuais essenciais para a garantia do contraditório e ampla defesa.[3]

Para tentar minimizar essas interpretações discrepantes, há no âmbito dos Juizados o chamado FONAJE, que é um fórum em que que os juízes se reúnem  para formar enunciados, como tentativa de uniformizar os entendimentos. Porém, esses enunciados não vinculam os juízes, pois alguns adotam, outros não. Assim, o FONAJE[4] pode ser visto como  mais uma fonte de criação de direito no âmbito dos Juizados, gerando mais incerteza jurídica.

Quanto a possibilidade de a população ajuizar ação sem representação de um advogado, em causas de até 20 salários mínimo, foi uma proposta interessante do ponto de vista democrático e popularizou o “acesso à justiça”. Entretanto, o que se percebe na prática é que essa possibilidade gera prejuízos àquele que ajuíza ação, não pela complexidade que envolve o direito material, que em grande maioria não é, mas pela complexidade processual, quanto ao entendimento acerca dos procedimentos que envolvem o processo, acentuada pelas incertezas procedimentais do próprio Juizado Especial.

Assim, essa dificuldade que diz respeito ao desconhecimento técnico, contamina o processo, e uma causa que poderia ser resolvida de maneira simples, por uma série de erros procedimentais, causa frustração às partes e gera sentenças ineficazes[5].

Quanto à morosidade processual, na tentativa de desafogar o judiciário e diminuir a quantidade de processos em andamento, reduzindo, assim, o seu tempo de tramitação, o CNJ, junto aos tribunais, tem promovido várias campanhas de Conciliação e Mediação, motivando, inclusive, o acordo nos processos. Nesse intuito, já em 1995, considerando a menor complexidade das questões de ordem material, os Juizados foram criados sob a orientação principiológico da conciliação, de modo que esse meio alternativo de resolução de conflito é obrigatório e faz parte do iter processual adotado.

Porém, no Brasil,  vige, ainda, a cultura do Judiciário (Juiz), e o que se percebe  na prática, no âmbito dos Juizados, é o descrédito das pessoas quanto aos acordos em relação às sentenças, justamente, por não entenderem os seus efeitos processuais; O desconhecimento das questões que de fato devem constar e como devem constar em um acordo para que este seja eficaz em relação àquela causa. E, devido à essas dificuldades, muitas vezes não são.realmente eficazes; E o comportamento apático dos litigantes habituais, grandes empresas do mercado de consumo, que  encaram o processo como um risco econômico calculado, em que é mais vantajoso enfrentá-lo, especialmente, nos Juizados, em que não há custas, a resolver o problema do consumidor. E assim, banalizam as Audiências de conciliação.

Devido a essas questões, muitas causas que poderiam ser resolvidas na conciliação, ou até nos órgãos administrativos como o Procon, não o são, e hoje os Juizados tem tantos processos quanto a justiça comum proporcionalmente, ferindo a garantia constitucional da Duração Razoável dos processos, uma vez que tais  causas, como já demonstrado, tornam-se, no curso processual, complexas.

Desse modo, se considerarmos o acesso à justiça como apenas o exercício do direito de ação, poder-se-ia dizer que os Juizados Especiais o contemplam plenamente, tendo em vista que superam as barreiras econômicas, dispensando custas processuais e representação de advogado, possibilitando, assim, o acesso de todos. Entretanto, o conceito de acesso à justiça é mais amplo, pois deve ser balizado pelas diretrizes do Estado Democrático de Direito, levando em consideração as garantias constitucionais relativas ao processo.

Assim, há de se considerar que o acesso à justiça é, conforme conceituado por Teori Albino Zavascki:

“O direito fundamental a efetividade do processo – que se denomina também, genericamente, direito de acesso à justiça ou à ordem jurídica justa – compreende, em suma, não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa e com potencial de atuar eficazmente no plano dos fatos” (ZAVASCKI, Teori Albino, 1999, p. 64, apud, ARAUJO, José Henrique Mouta, p. 44.)

e, ainda, como compreendido por Luiz Guilherme Marinoni, no mesmo sentido, como:

“[…] acesso a um processo justo, a garantia de acesso a uma justiça imparcial, que não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo jurisdicional, mas que também permita a efetividade da tutela dos direitos, consideradas as diferentes posições sociais e as específicas situações de direito substancial” (MARINONI, Luiz Guilherme, 2000, p. 28)

Nesse sentido, os Juizados Especiais garantem a porta de entrada à tutela jurisdicional, porém, como já demonstrado, não garantem o acesso pleno, quanto à participação efetiva e adequado como entende Marinoni, frustrando, a concepção do processo justo e democrático, uma vez, que não haverá paridade de tratamento, quando a parte litigante estiver sem advogado, acarretando, assim, uma vulnerabilidade. Logo, assim, é isso porque o acesso  à  justiça nesses órgãos se faz às cegas, na medida em que não há um suporte adequado àquele que é leigo quanto às questões jurídicas. Há visivelmente a barreira da linguagem, do chamado “juridiquês”, que ainda é distante da massa populacional, que sem um auxílio do profissional do Direito, geram dificuldades processuais que ensejam prejuízos à ele próprio que ajuíza ação, por não adotar os caminhos processuais adequados[6].

Por outro lado, mesmo em relação ao profissional do Direito, devido às incertezas procedimentais, o acesso se torna precário, pelo uso limitado das alternativas processuais que garantem a ampla defesa e o contraditório, as quais são suprimidas pela Lei 9.099, ou pelos juízes, que suprimem justificando-se a partir dos princípios informativos  dos Juizados Especiais.

Assim, apesar de os Juizados Especiais terem sido uma criação importante para garantir o acesso democrático, este só se fez enquanto porta de entrada à Justiça, sem perspectiva de uma saída satisfatória, pois o que se tem  percebido é uma ineficiência na aplicação das normas processuais, e uma dificuldade de  acesso do ponto de vista do conhecimento jurídico-técnico, que tem gerado, por conseguinte, provimentos judiciais inefetivos.

Portanto, o que, em um primeiro momento, pensou-se em uma justiça célere e próxima do jurisdicionado, com a criação dos Juizados Especiais, tornou-se, atualmente, alvo de críticas e desilusão por parte deste, colocando em risco a credibilidade do próprio poder judiciário.

 

Maria Theresa Duarte Reis

Monitora de Teoria Geral do Processo da FMD

 

 

REFERÊNCIAS

 

[1] Mac Galanter, em 1974, na pesquisa “WHY THE “HAVES” COME OUT AHEAD: SPECULATIONS ON THE LIMITS OF LEGAL CHANGE” relacionou os tipos de litígios a seus autores, os quais ele identificou como litigantes repetitivos (Repeat Players – RP) e litigantes ocasionais (One-Shotters – OS). A partir dessas denominações, uma série pesquisas foram desenvolvidas para demonstrar como uma das causas da morosidade da justiça, a quantidade vertiginosa de processos dos chamados Repeat Players.

[2] Os exemplos de dissenso entre juízes e secretarias quanto às regras procedimentais são inúmeras, mas podemos citar os mais recorrentes que são quanto aos prazos processuais, uma vez que alguns juízes adotam a contagem em dias úteis como o CPC e outros em dias corridos, invocando o princípio da celeridade; E quanto às formas de citação, na medida em que, à exceção da citação por edital, uns adotam todas as outras formas previstas no CPC; outros excluem a citação por hora certa; outros entendem que em algumas situações por mandado não pode se dá; alguns aceitam apenas a citação pessoal do réu, outros dão validade à citação de parentes próximos em nome do réu, bem como porteiros ou qualquer outra pessoa e assim, as inseguranças vão surgindo.

[3] Um exemplo importante de supressão das garantias da ampla defesa e do contraditório, se dá quando à forma de impugnar as decisões interlocutórias acerca das Tutelas Provisórias de Urgência. A Lei dos Juizados Especiais da Fazendo Pública, acertadamente, prevê o recurso de Agravo de Instrumento, porém a lei 9.099/95, dos Juizados Especiais Cíveis, prevê apenas o recurso inominado, de modo que a Turma Recursal não conhece dos Agravos de Instrumento contra interlocutórias, sendo o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, restando nos casos das Tutela Provisória de Urgência, apenas os Embargos de Declaração, e para tentar modificar a decisão, apenas o Juízo de Retratação, que é muito pouco frente uma decisão de tamanho impacto.

[4] Um exemplo de enunciados do FONAJE que desvirtuam o que está no CPC para fins de recepção nos Juizados Especiais, são o Enunciado 117, segundo o qual  é  obrigatória a segurança do Juízo pela penhora para apresentação de embargos à execução de título judicial ou extrajudicial perante o Juizado Especial, sendo que a obrigação se faz apenas para conferir ao recurso efeito suspensivo, e essa obrigatoriedade cerceia a garantia constitucional da ampla defesa e contradiz o instituto disciplinado no CPC; E o ENUNCIADO 10, segundo o qual,  a contestação poderá ser apresentada até a audiência de Instrução e Julgamento. Esse enunciado foi firmado uma vez que a Lei 9.099/95 é omissa quanto aos prazos para a contestação. Assim, justificado pela principio da celeridade, simplicidade  e informalidade, esse enunciado cria uma “norma” totalmente desconexa do iter procedimental, saltando a fases lógicas do procedimento, uma vez que a Audiência de Instrução precede a fase de saneamento, à qual a contestação e a Petição Inicial devem estar submetidas, justamente para se delinear a conveniência da fase de instrução,  e para, com base nos fatos e nas questões direito narradas por autor e pela réu, as provas serem instruídas devidamente.

[5] O professor Ronaldo Brêtas, em sua “Obra Estudo Sistemático do NCPC”, apresenta a impactante frase de Calmon de Passos, segundo o qual a Petição Inicial é o projeto da sentença. Nesse sentido, tem-se que nos Juizados Especiais as Petições Iniciais são elaborados nos setores de atermação, compostos por estagiários, os quais reduzem a termo exatamente o que lhes é ditado. Assim, o que ocorre na prática são petições que exprimem parcialmente a realidade, ou que não apresentam todos detalhes necessários, tanto porque quem dita não tem noção jurídica do que deve constar, quanto porque não há tempo hábil para o estagiário redigir em toda a completude. Em consequência, muitos dos provimentos jurisdicionais são ineficazes, porque o processo já se inicia com petições juridicamente deficiente, sendo que a petição inicial é um instrumento de limitação da atividade jurisdicional, tendo em vista o princípio da congruência, na qual o julgador deverá se ater ao que foi pedido na pretensão resistida.

[6] Todos os setores do Juizados Especiais, são compostos quase integralmente por estagiários, principalmente, dos primeiros períodos do curso de Direito, e a presença deles nos setores de  Atermação e Balcão, se fazem com o objetivo de auxiliar as pessoas que ajuizaram ação sem representação do advogado, de modo a padronizar os requerimentos e tentar equilibrar a falta do advogado, fazendo uma espécie de tradução daquilo que é narrado pela pessoa para a forma jurídica. Entretanto, tudo que a parte queira incluir no processo,  ela pode, até como meio de não suprimir direitos conferidos, mas processualmente, os prejuízos são visíveis. Nesse sentido, é comum ver uma atuação de protagonismo dos juízes,os quais interferem ativamente nos processos na tentativa de equilibrar os pólos processuais.

DIAS. Ronaldos Bretas de Carvalho, et al. Estudo sistemático do NCPC: com as alterações introduzidas pela lei nº 13.256, de 4/2/2016. Editora DPlácido, 2ª Ed. 2016.

GALANTER. Marc. Why the “haves” come out ahead: speculations on the limits of legal change. 1974. Disponível em: http://jan.ucc.nau.edu/~phelps/Galanter%201974.pdf. Acessado em: 10 de maio de 2018.

IOCOHAMA. Celso Hiroshi, BESTER. Gisela Maria Bester. Processo, Jurisdição e Efetividade da Justiça i. xxvi Congresso Nacional do Conpedi São Luís – ma.

MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª ed. São Paulo : Malheiros Editores, 2000. ISBN: 85-7420-217-7.

ZAVASCKI, Teori Albino, Antecipação de tutela. 2 ed. São Paulo : Saraiva, 1999, p. 64, apud, ARAUJO, José Henrique Mouta. op. cit. p. 44.